Roubaram-me a felicidade.

Era 4 da tarde.
As conversas nos corredores do centro de pesquisa sobre mim, pela primeira vez, começavam a incomodar.
Mas como sempre fui pouco sociável, deixei isso de lado.
Não podia permitir que conversas de corredores atrapalhassem meu pós-doutorado. Estranhas pessoas que não entendem um cara que compra sapos de pelúcia quinzenalmente para presentear sua namorada!
Eu não ligava. Tinha uma sensação de plenitude tão grande cada vez que chegava com uma pelúcia nova em casa e isso era uma das coisas que mais me davam força para continuar os estudos.
Que homem não se sente feliz ao ter uma mulher só pra si?
Uma mulher que dedica atenção exclusiva ao seu amado?
Eu tenho essa mulher.
Lembro-me o primeiro dia em que ela sentou no sofá de casa, a partir dali a felicidade não cessou.
Sete anos atrás, estava começando o mestrado; recordo.
Desde então nunca parei de presenteá-la com sapos de pelúcia quinzenalmente.
A cada novo sapo, uma nova e leve euforia que massageava meu coração, e por ser nova, fazia com que eu jamais enjoasse.
...
Tenho um problema que ninguém sabe, aliás, somente ela. Sou um homem extremamente ciumento. Mas quem não seria com uma mulher assim, tão companheira e amável? Por isso não tenho amigos. Evito receber visitas e ter possibilidade de um dia perdê-la. Pode ser covardia, admito, mas necessária.
A campainha não tocava nunca; mas, naquela tarde, enquanto tomava o banho depois de tê-la presenteado com outro sapo de pelúcia ouvi o "tim tom" que me fez tremer as pernas. A falta de costume em receber visitas acabara me deixando nervoso e inquieto.
Como eu não tinha amigos, será que algum parente dela havia chegado da Alemanha?
Até onde sabia, todos haviam morrido durante a guerra.
Uma interrogação tomou conta de mim, quando a campainha tocou novamente, tomei um susto tão grande que deixei cair a saboneteira e ao tentar pegá-la no ar, me bati no boxe do banheiro deixando fazer um estrondo que não negava a ocupação do velho apartamento do conjunto residencial onde eu morava.
Não tinha outra alternativa. Tive de ir abrir a porta.
Do banheiro até lá, minha cabeça ficou confusa, parece que fiquei triste e sem mundo.
Fonte: Google Imagens


Talvez os anos sem receber visitas tenham me acostumado a ficar apenas com minha amada, e a presença da energia de outra pessoa pode ter me causado isso.
Uma surpresa eu tive quando olhei pelo buraco da fechadura.
Vi uma policial olhando para o relógio. Estranhei. Era pouco antes do início da noite, recordo.
Abri e perguntei em que podia ajudá-la. Ela respondeu que queria conversar comigo.

Falei que não sabia que pesquisas sobre a deterioração de neurônios específicos de uma parte do cérebro causada pelo uso excessivo de álcool interessavam a uma policial.
Ela retrucou de maneira nada amigável, dizendo que não era sobre minha tese que ela queria falar.
Perguntou se podia entrar.
Fiquei nervoso, mas deixei.
Foi a hora em que pedi para vestir uma roupa.
Fui no quarto e deixei-a na sala.
Minha namorada estava deitada, linda e feliz com o novo presente que havia dado naquele dia.
Falei que estava com uma visita e que não demoraria. Logo voltava para dormirmos.
Ela não respondeu nada. Provavelmente por ciúmes.
Quando voltei, a policial observava à curtos passos os antigos quadros que decoravam minha sala e, de costas, perguntou se eu morava sozinho.
Respondi que não, que eu morava com minha namorada há sete anos e meio.
 - E onde está sua namorada?
Fiquei intrigado em saber onde ela queria chegar, mas respondi que estava no quarto, deitada.
Não entendi o porquê das perguntas, quando subitamente ela me apontou uma arma, e com as palavras de praxe me deu voz de prisão.
Achei que fosse brincadeira, mas ela me algemou. Não esbocei reação, não podia ter problemas que atrapalhassem minha pesquisa.
Algemado vi quando ela foi em direção ao quarto.
Respondi para ela não ir até lá e ela gritou:
 - Porquê?
Minha cabeça começou a doer e eu parecia estar num pesadelo.

Quando ela abriu a porta, deu de cara com a cama coberta de sapos de pelúcia.
Brutalmente ela foi os tirando. Até que nós fitamos - juntos - um esqueleto humano. Fiquei apavorado.
Não entendi o que aquele esqueleto fazia ali.
Ela perguntou se era a minha namorada e eu respondi que não.
Quando um filme passou na minha cabeça.
Lembrei-me de uma discussão nossa, e em uma de minhas crises de ciúmes, a enforquei no sofá.
Ela faleceu nos meus braços, e eu a levei para a cama.
De lá pra cá, passei a presenteá-la com sapos de pelúcia. Ela gostava muito.
Aquela encontro com a policial me fez ter noção da realidade. Parecia um choque irreparável eu ter que notar que minha amada estava morta e que eu era o assassino.
Roubaram-me a felicidade, quando tive noção da realidade.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

É nessa época.

Redação Enem 2013