Infância

Eram dois amigos. Muito amigos, registra-se.  A idade de ambos não era superior a 13, nem inferior a 10 anos.


Na casa de um deles, daquele levemente mais novo, havia um terraço - área feita em laje de cimento que substituía o teto e que tornava disponível um dos ambientes preferidos para as brincadeiras da dupla de amigos - uma alternativa à aflição de uma infância marcada pela pobreza.


Criatividade era praxe na dupla, e muito por isso, decidiram inventar uma nova brincadeira: rasgar um papel em pequenos pedaços e soltá-los do alto do terraço, para ver qual percorria o caminho mais “bonito” durante colisão de suas superfícies finas com as partículas do próprio ar. Parecia uma dança, de tão simples e perfeita que eram as coreografias dos papeis soltos do alto.
Fonte: depositphotos


Não eram quaisquer papeis. Eram papeis especiais. Totalmente diferenciados dos papeis tradicionais. Foram retirados de latas de leite em pó, alimento de luxo para os amigos, e por isso, percebiam grandiosíssimo valor. É provável que, também por isso, o pouso era sempre lindo, ao menos na cabeça da dupla. Antes de tocar o chão havia sempre uma curva mais radical que a outra, que arrancava risos das crianças.


O local usado como aeroporto aos papeis era um terreno vizinho, alheio às autorizações que permitissem aos garotos, sequer, o pensamento de pisar; entretanto, um dilema grande foi posto depois do papel matriz de um deles escorregar inteiro, rumo ao aeroporto; quero dizer, ao terreno vizinho: Pular ou não para resgatá-lo?  Valeria a pena do risco de ser pego por um cachorro feroz por conta de um papel?


Um longo período, de alguns segundos, foi suficiente para crerem que valia a pena o resgate, afinal, não era qualquer papel. Era um papel de leite em pó!


Durante o percurso de descida, tudo parecia sob controle e sem qualquer intempérie que pudesse ameaçar a empreitada infantil, mas, na metade do percurso, um dos alicerces de sustentação - uma massa de cimento seca e dura entre tijolos de uma parede não rebocada - cede levando em queda livre o garoto mais novo. O barulho no chão foi suficiente para alertar os cachorros de que havia intrusos. Vieram correndo e latindo em direção ao ocorrido. Pálida, pediu ajuda enquanto o mais velho já havia feito o caminho de volta completo, a criança mais nova. Sem ter escolhas, pôs as mãos às superfícies de cimento e iniciou uma escalada acelerada, empurrada pela adrenalina do momento, e conseguiu chegar ao topo antes de qualquer ameaça feroz do grande vira-lata de 20 x 50 centímetros.

Depois de respiraram aliviados, sorriram, emendando em pensamento síncrono: - Vamos inventar outra brincadeira.

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Redação Enem 2013