Eles estão loucos.
A história que vos conto agora é baseada na realidade. A conheci em recente visita a um amigo, pelo qual tenho desmedido afeto, que se encontra hospitalizado. Exatamente uma semana atrás, ele revelou depois de me fazer prometer que eu não faria o que agora faço: narrar para alguém seu atemorizador segredo.
Embora eu me considere digno de fidúcia alheia, especialmente de um grande amigo, necessito vos contar esse causo, sob pena de sentir compunção eterna diante de guardar para mim tamanho episódio extranatural.
Segundo o que ouvi, na época do acontecimento, ele não tinha menos que 8 e não mais que 10 anos de idade. Com ainda tão poucos aniversários comemorados, dormia numa cama de casal, de tamanho médio, mas confortável, ao lado da própria mãe. Aquela não parecia ser uma noite diferente. Tudo estava dentro da normalidade, inclusive o medo terrível que ele nutria de uma moldura emadeirada, antiga e com detalhes dourados que a tornavam cintilante, que guardava uma foto clássica de Jesus Cristo, daquelas em que o filho de Deus está com as mãos abertas ostentando os furos da crucificação em uma ferida visualmente recente e indescritivelmente angustiante, forçando seus arregalados olhos azuis a quase lacrimejarem.
- Era possível sentir a dor daquelas feridas só por olhá-las, ele me disse em meio a outras muitas frases carregadas de sinestesia.
É altamente provável que eu não consiga, mas tentarei discorrer em palavras tudo o que ouvi durante aquela infausta visita. Se incapaz eu for de fazê-lo com a exatidão de um sagaz contador de histórias, certamente não me enganarei a respeito do seu teor que expunha, com desprezíveis variações, o seguinte:
- Eu sentia medo. Muito medo. Eu sentia a dor das mãos perfuradas e imaginava o tempo inteiro que ele sairia daquele quadro para se vingar dos que o torturaram até a morte. Isso estava na minha cabeça e, naquela noite, eu notei - em visão periférica - o quadro se mover. Criei coragem e fixei o olhar no quadro. Nada vi. Conclui o óbvio, que era imaginação de uma criança com medo.
Virei novamente o rosto e neste momento tive a nítida e exata sensação de ver a mão se movendo. Ainda que levemente, não carrrego dúvidas, uma das mãos de Jesus Cristo se movia em direção a mim. Fixei olhar novamente no quadro, agora com os pelos arrepiados e um frio indescritível na espinha. Meu corpo tremia de medo e aflição. Como num arco reflexo, fechei os olhos com a força de um urso e embrulhei-me em um lençol velho e filho, quase transparente, com pequenos rasgos devido ao tempo de uso. Minha respiração ficou anelante, o torso cada vez mais trêmulo e a sensação de que havia alguém ali pertinho do lençol fino e com rasgos, observando-me com intenções cruéis, tomou conta de todo o espaço de todo e qualquer pensamento possível.
Tinha que tomar uma decisão. Uma grande decisão. Por sinal, a primeira grande decisão da minha vida, que foi um dilema de segundos, representou um contraponto entre o medo cruel e a contundente curiosidade infantil que me forçava a sentir um desejo incontrolável de abrir os olhos novamente para tentar ver, ainda que sob a penumbra do fino lençol que me protegia, se a imagem de Jesus Cristo - dentro daquele vetusto quadro que decorava o ambiente - continuava a acenar a mão perfurada em demonstração de qualquer sinal de vingança e fúria.
Vencida a indecisão, abri os olhos, muito lentamente para que meu ato não fosse notado, e pude confirmar minha suspeita: uma das mãos se movia levemente para fora do quadro, com um dos dedos reclinado alguns graus para baixo, como se para mim estivesse apontado, avisando que o pior estava por vir. O desespero foi inevitável e materializado em um brado altíssimo chamando por minha mãe, que acordou assustada e me abraçou.
- Foi apenas um sonho, disse ela. Logo em seguida, pegou a foto do quadro emoldurado e a queimou na minha frente.
Só a partir daí consegui dormir com tranquilidade, porque naquela noite eu tive certeza absoluta: aquela foto havia me aterrorizado de verdade. Concluí.
Ouvi uma semana atrás, do meu melhor amigo, o que terminei de narrar. Como ficar calado, portanto, diante de um relato tão fascinante? Não traio meu amigo. Ao contrário, sinto uma necessidade extraordinária de demonstrar sua imensa sensibilidade em perceber causos extranaturais e me sinto extremamente ofendido pela ingênua tentativa dos meus familiares próximos em me rotular como louco. Eles insistem que não tenho amigo. Segundo esses infelizes, tudo o que vos falo não passa de imaginação, causada pelos fortes remédios que tomo em virtude de uma suposta doença. Eles é que estão loucos.
Comentários
Postar um comentário